O Ur-Fascismo, tópico 1: a armadilha da tolerância

No primeiro tópico de seu livro "Il Fascismo Eterno", Eco define a primeira característica identificatória do que ele chama de Ur-Fascismo como sendo o culto à tradição. Calma, não confunda isso com "gostar de uma tradição". Você pode perfeitamente ter especial apreço pelas tradições judaicas, ou apreciar a culinária tradicional italiana. No culto (notem o negrito) à tradição, não é possível haver progresso do saber. Não existe nada para se descobrir, nada de novo para saber. A Verdade já foi dada e quem tiver olhos para ver, que a veja. Por consequência, não há nada que ninguém diga que não seja um pálido espelho da Verdade.

Diz Eco [tradução livre minha do original italiano]: "na bacia do Mediterrâneo, povos de religiões diversas (todas aceitas com indulgência pelo Panteão romano) começaram a sonhar com uma revelação recebida na aurora da história humana. Esta revelação teria ficado por muito tempo escondida sob o véu de línguas hoje esquecidas".

Há algo de platônico na descrição de Eco. O Ur-Fascismo acredita que existe uma "verdade original" que está oculta em hieróglifos egípcios, em runas célticas e em textos sagrados. Observem a diferença: não é que o fascista acredite que as runas célticas contenham algum conhecimento ou sabedoria próprios. O fascista sabe que todas as coisas, sejam runas dos Celtas ou a Bíblia, são expressões de uma "coisa única". É o tipo de ideia que atrai muita gente, sobretudo em ambientes esotéricos. Há um segundo aspecto ressaltado por Eco: o sincretismo é especialmente apreciado pelo Ur-Fascismo. Há pelo menos duas formas de se encarar o sincretismo:

1. Algo criado pela combinação de várias crenças e práticas. Ou seja: o sujeito cria algo novo de acordo com retalhos de outras crenças já existentes. Isso por si só não seria Ur-Fascismo.

2. O Ur-Fascismo envolve o sincretismo como uma tolerância das contradições. Esta parte específica do discurso de Eco é difícil de entender para muitos, afinal como é possível juntar "tolerância" e "fascismo" em um mesmo texto? Aí que está: esta tolerância não significa respeito pelo que há de singular e único em cada religião. Muito pelo contrário. Vale lembrar que "tolerar" significa suportar, aguentar. Não é o mesmo que respeitar. O Ur-Fascista tolera as contradições entre as religiões por pensar que, no fundo, todas são manifestações deformadas da tal Verdade. Que é, ora vejam só, única. Absoluta. Ela existe, mas os povos humanos, imperfeitos que são, a deformaram. Na prática, o fascista parece virtuoso por tolerar as diferenças culturais, mas não é porque as respeite. É uma condescendência arrogante com os outros povos que, coitadinhos, fizeram o que puderam com a semente da Verdade que carregam consigo.

Faço aqui uma provocação: será que quando se diz que Santa Bárbara é Iansã isso é realmente positivo? Que as duas entidades possuem semelhanças, isso é inegável, mas seriam elas a mesma coisa? Já testemunhei muitas ocasiões em que a relação era evocada como uma forma de dizer "os africanos, apesar de primitivos, reconhecem Santa Bárbara, mas a chamam de Iansã". Só que Santa Bárbara é Santa Bárbara. E Iansã é Iansã. O fato de elas serem confundidas no sincretismo não torna Iansã mais católica por causa disso. Iansã não é cristã. Qual a intenção subjacente quando se diz que são a mesma coisa?

O Ur-Fascismo não admite que as religiões sejam diferentes e inconciliáveis em muitos aspectos. É como se as formas gerais das crenças não passassem de detalhes estéticos de menor importância diante do Uno. Sempre que alguém alega que "todas as religiões dizem as mesmas coisas" [e não, elas não dizem], é como se dissesse "tanto faz".

E por que tanto faz? Porque, como diz Eco, para eles "A verdade já foi anunciada de uma vez por todas, e nós podemos apenas continuar a interpretar a sua obscura mensagem. É suficiente observar o programa de cada movimento fascista para encontrar os principais pensadores tradicionalistas. A gnose nazista se nutria de elementos tradicionalistas, sincréticos, ocultos. A mais importante fonte teórica da nova direita italiana, Julius Evola, misturava o Graal com os Protocolos dos Sábios do Sião, a alquimia com o Sacro Império Romano. O próprio fato de que, a fim de mostrar sua abertura mental, uma parte da direita italiana tenha recentemente ampliado seu programa, misturando De Maistre, Guénon e Gramsci é uma prova flagrante de sincretismo".

Repito: isso é muito platônico. Platonicamente falando, haveria um mundo chamado "das ideias". O nosso mundo, pálido espelho do anterior, é o mundo das formas. As cadeiras de nosso mundo não passam de um reflexo distorcido da Cadeira Verdadeira. As verdades ditas pelas religiões seriam, igualmente elas, um pálido reflexo da Verdade.

E poucas coisas são mais fascistas do que dizer que existe uma Verdade Única, e que as crenças dos povos não passam de um arremedo mequetrefe, um pálido reflexo desta Coisa Sem Contradições. Dizer que o Candomblé é a mesma coisa que o Cristianismo, ou que o Judaísmo no fundinho é igual ao Budismo, é fazer uma seleção dos pontos que não se assemelham, jogá-los fora e uniformizar tudo.

Para não sermos fascistas, precisamos entender que as coisas são diferentes e respeitá-las em suas diferenças (quando forem dignas de respeito). "Tolerá-las" porque "no fundo são a mesma coisa" é a semente totalitária que tenta uniformizar tudo. Eco conclui o primeiro tópico com uma observação sobre as prateleiras New Age das livrarias: Santo Agostinho, até onde se sabe, não era fascista. Mas misturar Santo Agostinho com Stonehenge como se houvesse uma relação necessária entre eles, é um sintoma perigoso do Ur-Fascismo.

Daí temos algo interessante a se pensar: seria o movimento New Age com toda a sua mistureba religiosa... fascista? A resposta a isso é que um sintoma não é suficiente para diagnosticar Ur-Fascismo. Há outras coisas a serem levadas em conta. Mas sim, acreditar que existe uma Verdade Única é uma semente fascista. Porque acreditar nisso torna você sujeito a corroborar alguém suficientemente convincente que se apresente como "canal direto" desta Unidade perdida.