O Ur-Fascismo, tópico 2: contra o iluminismo

Não é estranho que seja tão difícil entender a tolerância como primeiro sintoma do Ur-Fascismo, conforme descrito por Eco. Estamos habituados a entender a tolerância como virtude e em diversas circunstâncias ela de fato o é. Há coisas que devem ser toleradas, mas observe que tal necessidade é algo que se evoca quando a existência da coisa a ser tolerada é temporária.

Toleramos [até certo ponto] birras de crianças porque, bem, elas são crianças. Irão crescer. Toleramos a dor porque não temos escolha a não ser esperar que passe, com ou sem uso de analgésicos. Toleramos filas enormes porque a civilidade pede que não atravessemos o lugar alheio. Toleramos o frio, o calor, o desconforto de uma viagem longa. Você nota que, em todos os exemplos usados, "tolerar" envolve algo que não apreciamos verdadeiramente, mas aguentamos? Em alguns casos é o que nos resta sentir, e a tolerância é a diferença entre civilidade e violência.

A tolerância do fascista é indulgente, complacente. Há a Verdade, única e absoluta, e há as pessoas e suas outras religiões que, conforme pensa o fascista, devem ser toleradas porque, "coitadinhas", são uma pálida sombra da suposta Verdade. O outro é tolerado porque em algum momento as brumas serão retiradas de seus olhos, e ele verá a tal Verdade. Não é por amor que o fascista tolera a religião e a cultura alheia. É por considerar o outro uma criancinha tutelável. Frase fascista por excelência: em uma discussão, tentar infantilizar seu interlocutor com um "eu sei que a verdade dói". O emissor da frase, é claro, tem a mais pura certeza de que enxerga Ela, com E maiúsculo, a tal Verdade. Não há espaço para dúvida. Ele "sabe".

Para o fascista, nada há a ser descoberto, nada há a ser revelado, o espírito científico é uma tolice. Daí chegamos ao segundo sintoma do Ur-Fascismo, segundo Eco: a recusa ao modernismo. Conforme aponta o próprio Eco, fascistas e nazistas, ainda que diferentes, tinham o amor pela tecnologia como algo em comum. Porém o nazismo tinha [e os neonazistas têm] uma ideologia baseada em sangue e terra. Existe, dentro dessa crença, sangue certo e terra certa, sangue errado e terra maldita.

Em outra coisa nazismo e fascismo se unem: no horror ao espírito das luzes do fim do século XVIII. O Iluminismo é visto como [traduzo Eco]: "(...) o início da depravação moderna. Neste sentido, o Ur-Fascismo pode ser definido como 'irracionalismo'".

Fatos estabelecidos, como o formato da Terra e o heliocentrismo, são postos em cheque a partir de argumentos que só não são cínicos porque quem os profere acredita mesmo neles. O ceticismo e a dúvida investigativa, características desejáveis ao espírito filosófico, são seletivamente aplicados em alvos que brotam do Iluminismo. Para todo o resto [leia-se: para toda tradição], a dúvida é um pecado, é algo impróprio. Não é de se estranhar que uma das justificativas mais recorrentes de quem venera gurus fascistas é "se eu não o entendi e discordo dele, é porque não o alcancei".

Os tópicos 1 e 2 do Ur-Fascismo segundo Eco estão intrinsicamente ligados: tudo o que existe para se saber já foi revelado e é acessível aos iniciados. Qualquer descoberta que contrarie a tradição deve ser colocada sob suspeita.

Você nota que esses dois sintomas do Ur-Fascismo não se restringem ao âmbito político?

Se não nota, deveria.