O Fascismo Eterno, segundo Umberto Eco

Um dos livros mais instrutivos que li nos últimos tempos é a transcrição de uma palestra realizada pelo grande mestre Umberto Eco nos anos 90, nos EUA. "Il Fascismo Eterno" foi publicado aqui na Itália pela Casa Editrice "La Nave di Tesco" e deveria ser lido por toda e qualquer pessoa interessada em política, não importa que a pessoa se identifique como "de direita", "centrista" ou "de esquerda". É um livro notável por sua atemporalidade.


O que Eco diz parece servir como uma luva nos dias de hoje, mas ultrapassa a contemporaneidade justamente porque a proposta do título - "O Fascismo ETERNO" - é falar sobre o que o autor chama de Ur-Fascismo. O Ur-Fascismo vai além do movimento italiano da segunda guerra. Falar do Ur-Fascismo é falar da contemporaneidade, de um agora em que o termo é bastante usado, muitas vezes de forma imprópria, muitas vezes acertadamente.
A primeira coisa que Eco faz em seu discurso que virou livro é distinguir "nazismo" de "fascismo". O primeiro tem características bastante definidas e é facilmente reconhecível. O segundo se disfarça melhor.
Sobre o nazismo, Eco diz [tradução minha]: "o nazismo tinha uma teoria racista e ariana, uma noção precisa de uma arte degenerada [nota minha: a arte moderna], uma filosofia da vontade de potência e do super-homem. O nazismo era decididamente anticristão e neopagão do mesmo modo que o Diamat (a versão oficial do marxismo soviético) de Stalin era claramente materialista e ateu. Se por totalitarismo se entende um regime que subordina cada ato individual ao estado e à sua ideologia, então nazismo e stalinismo eram regimes totalitários".
É interessante, porque recentemente vimos argumentos do atual governo federal brasileiro, de que o nazismo seria um regime de esquerda. Não era. Mas também não era de extrema-direita como muita gente pensa. A teoria nazista o coloca como um "extremo-centro", o que é bem interessante se levarmos em conta a falácia recorrente de que o caminho do meio é sempre o mais sábio. Se levarmos em conta as ideias e práticas de Hitler, vejam onde o nazismo se localiza na Bússola de Nolan: ele está LEVEMENTE à direita, mas é bem central no eixo direita-esquerda. Mas é extremamente autoritário [está no extremo superior do eixo vertical]. Na prática, eu conheço gente mais à direita do que Hitler, mas que não pretendem matar judeus, negros e homossexuais nem nos sonhos mais loucos. O problema do nazismo não é o eixo direita-esquerda, é o eixo totalitarismo-liberdade. Ele está no extremo totalitário.


O fascismo é bem mais complexo do que o nazismo, segundo Eco, porque não era um regime com características tão bem definidas. Conforme ele argumenta ao longo de seu discurso - e pretendo abordar ponto por ponto em próximas postagens - o fascismo é muito mais eficiente em termos de sobrevivência porque ele se adapta, muda de forma e SEMPRE sobrevive. Diferente do nazismo, que era neopagão, o fascismo pode ser bem ateu, bem religioso e até mesmo se valer de um discurso ecumênico bastante bonitinho. Por isso Ur-Fascismo. O nazismo morreu, tenta ressurgir em alguns abilolados aqui e ali, mas o fascismo é imortal. E ele pode renascer até mesmo através de mim. Ou de você.
Para quem acha que a esquerda brasileira exagera ao dizer que o atual governo é fascista, Eco pode ser bem irritante, porque se levarmos em conta cada característica descrita por ele como sendo "fascistas", TODAS se encaixam no atual governo federal. Como uma luva. Repito: discurso proferido nos anos 90.
Só que Eco pode ser bem irritante para grande parte da esquerda, pois o discurso deixa bastante claro que o fascismo não é fácil de combater justamente porque ele dança. Ele dança da direita para a esquerda, da esquerda para a direita, é ateu quando lhe convém, religioso quando necessário, pode ser monarquista, republicano. Eco chama o fascismo de "totalitarismo desfocado". Não é uma ideologia monolítica como o nazismo, mas antes de tudo uma colagem, uma colcha de retalhos disposta a sobreviver acima de tudo. Por fim, Eco chama a nossa atenção: o Ur-Fascismo, fascismo eterno, dorme em mim e em você, esperando a hora oportuna para ressurgir e a tudo devorar.
Em próximas postagens, transcreverei e comentarei cada um dos quatorze pontos que Eco denuncia como sendo fascistas.